TERESA SEGURADO PAVÃO                                                                                                                                                                 

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Terra Branca, 2023

Vistas da Instalação, “Terra Branca”, Galeria Neupergama e Museu Municipal Carlos Reis, Torres Novas — PT 

Fotografias: Artur Marques 



A todos os que me ofertaram pedaços de qualquer coisa.

Terra Branca é a matéria por mim eleita como base dos meus trabalhos. É um barro sem óxidos, por isso branco e sugestivo, como uma folha de papel imaculada.
Tudo começa no fragmento.
Fragmento, encontrado, achado, ofertado.
Podem ser objectos, parte de objectos, cacos de faianças ou porcelanas, marfins, conchas, corais, ossos, fósseis, pedras, ferros, bronzes, pratas...
Os fragmentos são integrados no barro num diálogo íntimo e profundo, através de sulcos, reentrâncias, relevos, furações1, espigões, agrafos e ataduras de metal.
Os fragmentos carregam histórias, vidas antigas, memórias.
Escolho formas elementares que são também as das memórias do quotidiano atravessadas pelos tempos, como a taça, o prato, o frasco, a caixa, a gaveta – formas de conter; a da almofada, do acolchoado de um forro de seda – formas de pousar.
São pequenas esculturas da escala do cuidar.

No Museu Municipal Carlos Reis a exposição anuncia-se com “Tintas”, peça alusiva ao pintor. Continuando nas salas de Arte Sacra, galeria de esculturas de santos e anjos, apresento uma série de caixas: “Caixa-Asas”, “Caixas-Bronze” com tampas trabalhadas, onde os motivos vegetais se ligam às vestes das figuras policromadas de madeira, “Caixa-Gaveta” que dialoga com o móvel de divisórias desenhado por Carlos Reis e inspirado nos bargaños espanhóis, “Caixas-Forte”, “Caixa- Estojo” texturada com ferros de uma oficina de encadernação. Para esta conversa, elegi também outras obras: “Livros” com capas em vidrado dourado, como se de livros de oração ou de horas se tratasse, “Taças-Pés” com pés de metal fundido que aludem aos sacrifícios e às peregrinações, “Taça-Almofariz” que nos sugere segredos e alquimias e um “Ovo-Ouro” perto das Senhoras do Ó. Na capela, junto a uma pedra sepulcral, “Almofada Quatro Bronzes”, em barro branco polido, facilmente nos transporta à escultura tumular.
Na última sala, onde fotografias a preto e branco de rituais religiosos como procissões e romarias cobrem as paredes, peças claras, nas quais a modelação do barro continua a morfologia de ossos encontrados nos campos e nas praias, organizam-se em vitrines de luz. Ao contrário do que se passa nos relicários sagrados nos quais o osso, relíquia por excelência, está protegido e intocável, aqui é pegas de pratos de oferendas, bases de taças, puxadores de tampa de caixas, aquilo que se toca. Ao reintroduzir o osso numa ideia de uso quotidiano, provoco uma inversão do seu significado enquanto relíquia protegida.
Na Galeria Neupergama exponho um conjunto de obras, algumas das quais apresentadas no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa a 5 de Janeiro de 2023, data que assinalou dois anos da morte de João Cutileiro.
Existem três esculturas de sua autoria na cidade de Torres Novas.
Mais uma vez, uso o fragmento que aqui é a pedra, ou melhor, as pedras que João Cutileiro e Margarida Lagarto foram juntando ao longo do tempo para me serem ofertadas. O escultor trabalhava com os desperdícios das pedreiras do Sul, e o que me passou foram os desperdícios, as sobras, de mármores dos seus trabalhos.
O barro, matéria mineral como a pedra, continua assim as formas deixadas por Cutileiro, sem nunca as alterar, são bases, tampas, pegas, asas, extensões ou pontos de partida das minhas peças.
O torno (roda de oleiro), nunca antes usado no meu trabalho de cerâmica manual, aproxima, através da mecanicidade, o barro da pedra, assim como os tons claros e as texturas.
O ferro serve nestas obras de elemento de ligação entre a escultura e a cerâmica. Ferro, material tão presente na escultura em geral, como nos gatos/grampos nos cacos da cerâmica quebrada. Voltei mais tarde ao atelier do João, um silêncio e um pó branco cobriam tudo.
Tive o privilégio de trazer mais pedras. Todas as que quis.
Trouxe pedras, algumas maiores, não aquelas que cabiam em caixas de cartão e de sapatos, como as primeiras ofertas que recebi.
Nos espaços exteriores havia pedras cortadas, trabalhadas, escavadas, onde água das chuvas se depositou. Vidrei com chumbo o fundo de algumas, para reter para sempre a memória desta última visita.


Teresa Segurado Pavão, 15 de Novembro de 2023

Mark
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