TERESA SEGURADO PAVÃO                                                                                                                                                                 

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Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra, 2023

Vistas da Instalação, “Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra” - Teresa Segurado Pavão e João Cutileiro, MNAA - Museu Nacional de Arte Antiga — PT

Fotografia: Tiago Ferreira Pinto e Paulo Castanheira




“No alto das montanhas por uma ravina profunda dentro do meu bloco maciço, fechado, sozinho — mas depois trazido para baixo e despojado, sou agora visto contra a minha vontade indigente de pedra.”

Michelangelo


João Cutileiro referia-se frequentemente a este poema ao falar do seu processo criativo. Para Michelangelo, a escultura estava dentro do bloco de mármore à espera de ser libertada pela mão do artista e, no poema, gracejava que bastava atirar a pedra por uma montanha abaixo para que o excesso fosse naturalmente retirado, mesmo contra a sua vontade. Cutileiro concluía a sua história dizendo que ele viria atrás do bloco apanhando os restos e faria a sua obra juntando esses fragmentos. Era assim que Cutileiro trabahava, a partir do desperdício proveniente das pedreiras.

De alguma maneira podemos ler toda a história da escultura, talvez mesmo toda a história da arte, a partir deste gesto: o de apanhar os destroços das gerações anteriores e voltar a erguê-los de outra forma, com outras pers- pectivas, em especial, com outras intenções e objectivos. Se o tempo é uma invenção humana, uma construção que nos ajuda a diferenciar o presente do passado, esta exposição vem mostrar que estes diferentes tempos comu- nicam e fluem entre si. Dobram-se, como defenderia Deleuze.

A exposição teve como início o desejo de Teresa Segurado Pavão prestar homenagem a João Cutileiro. Uma homenagem ao artista e ao amigo que tanto admirava. Teresa Segurado Pavão visitava frequentemente o atelier de Cutileiro, e da mesma forma como este se maravilhava com os restos das esculturas de Michelangelo, Segurado Pavão fascinava-se com os excedentes das obras de Cutileiro.

Os fragmentos são um elemento central na obra de Teresa Segurado Pavão, espoletam a sua imaginação, ao mesmo tempo que carregam me- mórias, histórias e vidas antigas. A partir de pequenos objectos — restos de esculturas, cacos de faiança e de porcelana, pedras, ossos, fios, conchas, marfins de um velho piano —, e num diálogo íntimo e profundo, a artista constrói as suas obras integrando os fragmentos através de sulcos, reentrân- cias, relevos, furações. Recorre também a elementos metálicos, neste caso o ferro, aludindo às estruturas das esculturas de Cutileiro.

João Cutileiro, e depois Margarida Lagarto, juntavam caixas com «restos», desperdícios das obras do escultor que ofereceram à ceramista. Daqui resultou a série de trabalhos que é apresentada no Museu de Arte Antiga pela primeira vez em diálogo com um importante grupo de esculturas de Cutileiro. As afinidades entre a obra de ambos tornam-se evidentes, e, em particular, nesta escala do íntimo. Detêm-se nos detalhes, nos gestos reali- zados com o máximo de cuidado e atenção, com uma economia formal das linhas e das figuras.

Há uma proximidade natural entre o barro e a pedra. Ambos são mate- riais minerais, mas em estados diferentes. Teresa Segurado Pavão escolhe trabalhar com barro branco por se aproximar a uma folha de papel imaculada à espera de ser intervencionada pelo artista. Cutileiro escolhe maioritariamente trabalhar o mármore, uma matéria-prima local mas também a pedra nobre da escultura. Segurado Pavão escolhe também finalizar as suas obras na roda do oleiro, para que a manualidade que é habitual nas suas peças seja substituída por um aspecto mais mecânico, aproximando-se da forma como Cutileiro terminava as suas esculturas. Utiliza ainda o ferro para as ligações entre a pedra e a cerâmica (agrafos, espigões, prisões), como o escultor estruturava as suas obras.

As peças de Segurado Pavão podem ser agrupadas por tipologias de for- mas — formas que a artista refere como as primárias da cerâmica e que evocam um uso do quotidiano que se perdeu num processo de transformação artística. Ao observá-las, somos transportados para um imaginário que se prende, por um lado, com a essência de um museu como Arte Antiga — preservar a memória, estudar, catalogar —, mas também com o de um sítio arqueológico — a emoção da descoberta, agrupar, cuidar.

Para este livro decidimos juntar às imagens das obras as belíssimas foto- grafias de Henrique Pavão do atelier do João Cutileiro. Um espaço parado no tempo, coberto por um manto de pó de pedra. O espaço de trabalho transforma-se também ele num sítio arqueológico, um lugar da memória, mas também um campo para descoberta futura.

Esta é uma exposição sobre fragmento, memória e escultura. Uma exposição sobre o cuidar, o preservar e o dar uma nova vida. Talvez mais do que uma simples exposição, é um projecto de afectos e de homenagens.



Filipa Oliveira, 2022

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